LOPES, José de S. Miguel. Educação e Cinema: novos olhares na produção do saber.
Porto: Profedições, 2007.
Apresentação
“O cinema é um artefato cultural cuidadosamente manufaturado, que busca propiciar ao seu público um misto de identificação e distanciamento. O filme carrega, desde sua concepção até sua exibição pública, intenções e cargas simbólicas que são oferecidas ao espectador que as degusta conforme as suas próprias intenções e competências simbólicas. Ao colocar o espectador numa posição privilegiada, na qual observa todos os acontecimentos narrados, mas sem o envolvimento real, o cinema pode empreender o seu jogo de revelação e engano. E, através desse jogo, pode desencadear uma relação entre tempo e memória, entre imagem e imaginação, dando um novo significado ao presente vivido.” (p.7)
“Desde cedo o cinema soube criar uma situação de projeção/identificação para com o espectador, desencadeada pela própria linguagem e evidenciada pelo próprio ritual cinematográfico. O ato de ir ao cinema, sentar-se numa sala escura, ser cercado de silêncios interrompidos por sussurros, a luz que vem do alto e de trás projetando-se na imensa tela a frente e que inunda os seus espectadores com suas imagens e as próprias estratégias narrativas propiciam um mergulho do espectador.” (p.7)
“A tentativa de encontrar refúgio numa sala escura onde são projetados focos de luz não é mais do que uma fuga da realidade.” (p.8)
Para Lopes, o cinema é fascínio, é mística, é preservar a curiosidade de criança, é fugir da realidade e ser parte de outra, é viver cinematograficamente, é uma função social, é refletir sobre a própria condição humana, é arte, é uma declaração de amor, é um meio de reflexão, é invenção, é um instrumento de análise da história.
O diálogo entre o cinema e a educação. Na minha trajetória de educador
Nesta primeira parte, o autor narra sua experiência e transformação com o cinema. Que iniciou no período escolar, onde apreciava todo tipo de cinema, de acordo com a limitação das opções oferecidas nos espaços de cinema, ou seja, acesso quase restrito ao cinema hollywoodiano. Depois, passou a freqüentar um cineclube em Moçambique, que ampliou seu leque e repertório, e onde passou a aperfeiçoar seu gosto e se tornar mais exigente.
“O meu gosto pelo cinema, passando pelo simples prazer de fruir qualquer obra, independentemente da sua qualidade estética ou outra, até o fato de ter me progressivamente tornado mais exigente. Aperfeiçoei o meu sentido crítico, abandonando as formas banais de cinema e passando a selecionar mais criteriosamente as obras cinematográficas.” (p.14)
Um desaprender o gosto, talvez.
Para ele, ‘definir o cinema seria como definir a arte, ou alguma coisa ainda mais vasta, definir o indefinível, a vida mesma.’ (p.14)
Trabalhar com o cinema em sala de aula, não é torná-lo suporte, mas torná-lo a própria sala de aula.
Ele define o cinema hollywoodiano como um ‘entorpecente’ que faz com o público se mantenha num estado de embriaguez, de ‘droga’. A linguagem cinematográfica favorece este uso, mas Lopes sugere a ampliação do olhar para outras obras e manifestações fílmicas.
Alguns aspectos importantes do trabalho do cinema em sala de aula: considerar os diretores, na tentativa de compreendê-los em suas manifestações; considerar o contexto dos filmes; ler sobre os filmes em espaços especializados; debater após o filme para ampliar as possibilidades de interpretação e compreensão do filme; usar palavras-chave para discussão pré e pós filme; assistir várias vezes para pontuar melhor as passagens; uso de curta-metragem no espaço escolar, ainda que seu acesso seja difícil; explorar a estrutura narrativa e seu desenvolvimento; ativar o pensamento dos alunos, logo após exibição e debate, solicitando uma redação, resenha ou crítica de 1 lauda sobre o filme.
“Foi assim que o cinema se tornou, mais do que nunca, uma síntese de todas as artes, que englobou os quatro elementos a saber: a imagem (quer elas estejam em movimento, ou em cores), sons, palavras e música.” (p.20)
“Não há nenhuma arte, nem o teatro, que iluda a vida como o cinema. (...) Quando lê um livro, você é um realizador, porque está a pôr imagens, a imaginar a cara dos atores, o vestir, o andar. Está a ver seu filme.” (p.21)
Para o autor, a televisão é uma grande rival do cinema, já que ‘o cinema estimula o pensamento, a televisão paralisa-o’. (p.22)
“Têm sido poucos os educadores que têm escrito sobre cinema, em particular trabalhos que nos revelem a sua relação com o fenômeno educacional. Constata-se, pois uma produção intensa e diversificada dessa relação em vários países mas, no Brasil e em Portugal, é ainda incipiente o estudo e sistematização desse universo.” (p.27)
Lopes alega que o cinema dominante é de vertente hollywoodiana, que acaba sufocando outras produções que lutam por uma outra forma de expressão. Ele reconhece haver fissuras no cinema norte-americano, através do cinema independente. Para ele, o cinema deve ser utilizado primeiro “como ferramenta de reflexão, fazendo com que após analisar criticamente uma película cinematográfica o aluno procure complementar e aperfeiçoar seu raciocínio através do estudo das matérias do currículo; e que esteja preparado para propagar este conhecimento adquirido, mais uma vez, através do cinema, de forma similar ao processo que se deu com ele.” (p.29)
Para ele, existem dois objetivos principais para o trabalho com cinema e educação: “o cinema como forma artística que se apresenta ao espectador como real, e que este seja ponto de partida para uma reflexão crítica sobre questões políticas, filosóficas, sociológicas, antropológicas e educacionais; além de despertar o interesse dos alunos pelo estudo, auxiliando a formação de agentes multiplicadores do pensamento crítico.” (p.29)
“Os melhores filmes de sempre foram aqueles que
levaram a montagem, a focagem, a composição, a iluminação e o trabalho de
câmera até o máximo das suas possibilidades enquanto mídia.” (p.29)
Lopes descarta todo e qualquer uso do cinema
hollywoodiano, cinema indústria (seja dos EUA ou de outros países) em sala de
aula, por ser um espaço e tempo limitados, porém pergunto-me se sua visão não é
demais essencialista e preconceituosa, já que qualquer filme poderia ser usado
como ponto de partida para “reflexão crítica sobre questões políticas,
filosóficas, sociológicas, antropológicas e educacionais”, ainda que ele afirme
que quem pensa assim, está aprisionado a um gosto condicionado pelo cinema
hollywoodiano.
Além disso, em sua lista de 100 melhores filmes, há
vários de vertente hollywoodiana, realizados dentro de padrões mercadológicos,
mas ainda assim, valorizados por ele.
Aperfeiçoando o olhar no diálogo entre o cinema e a educação
Lopes resgata a publicação
de “A educação cinematográfica” realizada pela UNESCO em 1961, que defende que
“a melhor forma de defender o público, e em particular a juventude, de excessos
e erros das mensagens audiovisuais, é a formação e a criação de hábitos pelos
espectadores, de forma a garantira escolha e a melhor compreensão da mensagem
audiovisual. Ainda, segundo esta instituição mundial, a educação
cinematográfica já tem, em muitos países, um lugar estabelecido nos planos
curriculares do ensino, não se restringindo a atividades extracurriculares ou
de voluntariado cineclubístico, cabendo-lhe uma função educativa essencial.”
(p.36)
“O cinema pode ser definido como uma educação
informal, que necessita de uma metodologia para melhor aproveitamento na sala
de aula. (...) A educação necessita lançar um olhar crítico sobre o cinema.
Precisa se libertar da crítica especializada e construir seu próprio corpo
teórico visando fins específicos. O cinema é um meio de reflexão da sociedade.”
(p.36)
“A sala de aula cinematográfica deve dar a
oportunidade aos alunos de terem uma cosmovisão do mundo, da sociedade em que
vivemos, e entender que as relações de produção da nossa época indicam o
sentido e significado de nosso presente.” (p.37)
“O filme educa no sentido
que amplia e questiona o nosso conhecimento dos contextos em aparência
familiares e facilmente nomeáveis. (...) Educar pelo cinema ou utilizar o
cinema no processo escolar é ensinar a ver diferente. É educar o olhar. É
decifrar os enigmas da modernidade na moldura do espaço imagético.” (p.37)
“O problema é a passividade do espectador, que sem
cultura cinematográfica, sem a posse dos instrumentos e dos procedimentos da
linguagem da sétima arte, não assimila as possibilidades comunicativas do
cinema. (...) Aprender a ver cinema é realizar esse ritual de passagem de
espectador passivo para o espectador crítico. (...) A educação cinematográfica
implica também uma formação estética na perspectiva que a experiência artística
é indispensável á formação harmoniosa da personalidade.” (p.38)
Para ele, “filmes que confirmam o sistema, devem ser
desmistificados no processo educacional, no processo escolar. (...) É
fundamental ver e analisar com os alunos alguns filmes ‘modelos’ dos principais
gêneros do cinema hegemônico e procurar fazer a crítica desse cinema. Este será
um bom ponto de partida, para em seguida, iniciar os alunos num repertório
intelectual e cinematográfico mais sofisticado.” (p.38-39)
Ou seja, é importante
desmistificar o cinema que eles já conhecem, para então mais tarde ampliar seu
repertório. A pergunta é “quanto tempo isso pode levar?” E quando o professor
ainda não está totalmente neste estágio?!
“O fácil acesso às imagens não significa um fácil
entendimento das suas formas. (...) Educar é ir além das aparências. Educar
significa reconhecer o ‘não-visível’ nas imagens.” (p.39)
“A imagem é hoje um dos mais importantes meios de
comunicação e é inegável que a tecnologia está a provocar alterações nas formas
de pensamento e de expressão. (...) Freinet já discutia a necessidade do professor
reconhecer e utilizar estes recursos: ‘A desordem cultural persistirá enquanto
a escola pretender educar as crianças com instrumentos e sistemas que foram
válidos há 50 anos. (...) Subsistirão as lições, os braços cruzados, as
memorizações, enquanto fora da escola haverá uma avalanche de imagens e de
cinema.’
Lopes defende o potencial educativo dos filmes, já
reconhecido pelos que já o utilizam em sala de aula, mas também afirma que as
imagens sozinhas não falam por si só, pois é preciso a intervenção do professor
para potencializar seu uso. Isso vale para o cinema, televisão, computador,
etc. As imagens só não devem ser utilizadas como ilustração ou substituição de
professor, pois aí perde-se seu potencial educativo.
“A sala de aula deve ser considerada como um espaço
imagético. Ela já incorpora, e sofre a intervenção dos meios de comunicação
social com a utilização de jornais, revistas, programas de televisão. Porém, é
preciso ver que esses meios podem ser considerados salas de aula, como espaços
de transformação de consciência, de aquisição de novos conhecimentos; que eles
dependem de uma pedagogia crítica, e que o sucesso dela depende de como vamos
ver e ouvir os produtos da indústria cultural.” (p.41-42)
“Hoje em dia, a imagem em movimento, nas suas
várias vertentes, do computador à televisão, passando pelos jogos interativos e
partindo do cinema, povoam o cotidiano e o imaginário de todos nós e
particularmente dos jovens, pelo que será impraticável, a curto prazo, não
saber ler e escrever a linguagem da imagem em movimento, que tem suas
características próprias, como todas as linguagens, que se salienta a
versatilidade e a novidade.” (p.42)
“Se a sala de aula é um espaço de discussão e
reflexão, o filme é este mesmo espaço ampliado em maior escala, em que os seus
procedimentos formais e narrativos passam a ser a linha condutora do viés
educacional.” (p.43)
“Se as condições de produção condicionam o filme, é
possível reconhecer diretores que, mesmo atuando segundo as convenções do
mercado, tentam ir além das representações singelas da sociedade. (...) Pensar
na contribuição do cinema na educação é buscar o pensamento, a filmografia
deste ou aquele diretor, e inseri-lo no processo educacional.” (p.43)
Descolonizar o cinema? A educação agradece
“O cinema é uma forma de criação artística, de
circulação de afetos e de fruição estética. É também uma certa maneira de
olhar. É uma expressão do olhar que organiza o mundo a partir de uma idéia
sobre esse mundo. Uma idéia histórico-social, filosófica, estética, ética,
poética, existencial, enfim. Olhares e idéias postos em imagens em movimento,
através dos quais compreendemos e damos sentido às coisas, ou ainda, através
dos quais buscamos e interrogamos sobre o sentido das coisas,
ressignificando-as e expressando-as.” (Teixeira & Lopes apud Lopes, 2007,
p. 52)
Neste capítulo ele reforça a idéia do cinema
hollywoodiano como algo negativo, com e sem razão em vários aspectos.
Lopes diz que apesar do cinema ser reconhecido, sua
linguagem ainda é pouco lembrada e trabalhada nas escolas. A relação das
pessoas com o cinema ainda é puramente intuitiva, quase como ‘um músico que
aprende a tocar de ouvido’.
“A possibilidade de se comunicar, de se expressar e
de receber informação através do cinema supõe a aceitação prévia de que é uma
forma de expressão tão importante hoje como a linguagem verbal, oral e
escrita.” (p.58)
“O cinema pode ser ainda um elemento vital para a
construção de um homem livre nas suas convicções, crítico nas suas análises,
humanista e sensível na sua forma de compreender o olhar o mundo e a vida,
aberto à multiplicidade de propostas, respeitando as diferenças e a igualdade
que devem balizar a sociabilidade humana, pode ser inovador na descoberta de
novos caminhos.” (p.64)
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E o livro continua! =)