terça-feira, 4 de outubro de 2011

"A hipótese cinema" de Alain Bergala

Este livro é uma das maiores referências para aqueles que se dispõem a pesquisar sobre cinema e educação, na perspectiva do fazer cinema-arte. É uma leitura tranquila, gostosa e super importante. Bergala é uma das referências do meu trabalho e pesquisa.

Em junho desse ano, tive a oportunidade de conhecer Bergala de perto numa palestra no 2º Encontro de Cinema e Escola em São Paulo. Acho sua fala um pouco radical, mas ao mesmo tempo há muitos que distorcem suas visões sobre o cinema. Vale a pena ler por conta própria e conhecer seu trabalho!

Trouxe para o blog um pouco das impressões da minha leitura!

Obs.: Este é o livro original (tenho!!), que já possui uma versão em português, recentemente traduzido pelo CINEAD - projeto de pesquisa e extensão da UFRJ sob a coordenação de Adriana Fresquet. A versão em port. ainda não está disponível comercialmente, mas entrando em contato com a editora da UFRJ, talvez exista algum exemplar. Eu só tenho uma cópia do original em port. =(

Alain Bergala é um diretor francês de filmes de ficção e documentários, atua como professor de Cinema na Universidade de Paris III, trabalhou como diretor e editor na revista de cinema Cahiers du Cinema, e foi conselheiro da área de cinema do ministro francês Jack Lang, que em 2000, elaborou um plano de cinco anos para a introdução das artes no ensino fundamental.

Bergala tem uma experiência com cinema, dentro e fora da escola, de mais de 20 anos e formulou sua ‘hipótese-cinema’, considerando o cinema enquanto arte, para tentar responder a questão “Como ensinar o cinema no âmbito da escola?!” 

A hipótese – análise e criação

Para Bergala a questão não é ensinar, mas iniciar os alunos à arte do cinema. Nesta obra, o autor traz propostas precisas do que fazer e não fazer no contexto escolar. 

Para o autor, o cinema deve ser utilizado, enquanto arte (criação do novo), para promover o encontro com a alteridade, como uma forma do espectador relacionar sua existência a partir da visão do outro, compreendendo o mundo a partir de um olhar diferenciado, sensibilizado a partir da experiência do contato.

“A arte, para permanecer arte, deve permanecer um fermento de anarquia, de escândalo, de desordem. A arte é por definição um elemento perturbador dentro da instituição. Ela não pode ser concebida pelo aluno sem a experiência do ‘fazer’ e sem contato com o artista, o profissional, entendido como corpo ‘estranho’ à escola, como elemento felizmente perturbador de seu sistema de valores, de comportamentos e de suas normas relacionais.” (BERGALA, 2008: p.30)

Bergala diz que Godard considera a cultura como ‘regra’ e a arte como ‘exceção’, no sentido que de não possa ser ensinada, mas encontrada, experimentada e transmitida de outras formas além do discurso do saber. “A arte deve permanecer na escola como uma experiência a parte.” (Bergala, 2008: p.31)

O autor não sabe ao certo se é na escola o verdadeiro espaço para acolher a arte, mas para muitas crianças, é o único lugar onde isso seria possível.

O que ele sugere como abordagem é formar um espectador que vivencie as emoções do criador de um filme. Pensar o filme através do seu autor. Por essa razão, ele não acredita que se deva partir do conhecido para abordar o menos conhecido, pois isso conduz a um afastamento da singularidade do cinema. Para ele, analisar alguns filmes não é suficiente para promover uma mudança no olhar da criança, pois o trabalho para formação do gosto é longo e demorado. O gosto, diferente da opinião, não pode ser negociado, pois é formado a partir da singularidade de cada pessoa, no íntimo de cada um.

Aqui entendo que para ele, não é possível fazer a criança deixar de gostar de alguma coisa, por mais ‘medíocre’ que se seja, pois o ‘bom’ e ‘ruim’ são definidos exatamente pelo gosto. Ao mesmo tempo, Bergala insiste que não se deve perder tempo com ‘filmes ruins ou medíocres’. Ou seja, ele problematiza a questão do gosto, mas define o que para ele seria um bom e mau cinema, e neste sentido acho autoritário e contraditório.

Ele diz que a “arte que se contenta em enviar mensagens não é arte, mas um veículo indigno da arte: isso vale para o cinema”. (Bergala, 2008: p.48) Um filme-arte é duradouro, “permanece vivo, contraditório, irritante e fascinante, cheio de invenções, que continua dando o que pensar quarenta anos depois de sua realização.” (Bergala, 2008: p.49) Por essa razão é natural que num primeiro encontro com um filme-arte, possa haver rejeição violenta, dificuldade de acesso, irritação, onde ainda representa uma possibilidade a ser trabalhada. O problema é quando a atitude for de indiferença, nada tocar o espectador de nenhuma forma.

Desafios para a escola

Bergala considera importante a escola preservar um acervo de filmes alternativos aos de cinema de puro consumo, para que os alunos possam ter autonomia de ver e rever um filme e ter acesso com mais facilidade.

4 propostas e desafios para o professor:

-Organizar a possibilidade do encontro com os filmes

Considerando que um primeiro encontro pode provocar revolta e choque, não é uma tarefa fácil, mas é necessário promover encontros dos alunos com filmes-arte, seja em sessões de cinema, em sala de aula ou cineclubes.

-Designar, iniciar, tornar-se passador

Diferente de muitas teorias pedagógicas, Bergala diz que o gosto pessoal do professor e sua relação íntima com as obras de arte é de extrema relevância, pois “quando aceita o risco voluntário, por convicção e por amor pessoal a uma arte, de se tornar ‘passador’, o adulto muda de estatuto simbólico, abandonando por um momento o seu papel de professor, tal como definido e delimitado pela instituição, para retomar a palavra e o contato com os alunos de um outro lugar dentro de si”. (Bergala, 2008: p.64)

-Aprender a freqüentar os filmes

Bergala sugere que as crianças sejam espectadoras-criadoras, fazendo uma leitura criativa do filme, não apenas analítica e crítica. A escola muitas vezes exige resultados rápidos e precisos, a partir de uma única exibição de um filme, fazendo às vezes, uma análise muito superficial, quando cada criança tem um tempo diferente de receber e relacionar-se com uma obra de arte. Ele considera de extrema importância respeitar este tempo. “O verdadeiro encontro com a arte é aquele que deixa marcas duradouras”. (Bergala, 2008: p.100)

-Tecer laços entre os filmes

O autor considera importante relacionar obras do presente e do passado, tecendo laços e buscando trabalhar uma consciência dessa relação, pois é importante “compreender como toda obra é habitada pelo que a precedeu ou lhe é contemporâneo, na arte em que ela surgiu e nas artes vizinhas, inclusive quando seu autor não o percebe ou o contesta.” (Bergala, 2008: p.68)

A importância do criar

Além de ir ao encontro do cinema-arte, Bergala considera ainda mais importante que os alunos tenham a experiência da criação. O fazer como aprendizado. Mas ressalta que o professor não deve exigir ou esperar que os filmes sejam narrativos, compreensíveis e bem acabados, pois é complexa a criação de uma história “com imagens e sons, decupagem, encenação, ritmos e significações” e demanda anos de maturação. (Bergala, 2008: p.175)

Ele ressalta a importância da experiência individual de cada aluno, em algum momento, já que na instituição escolar é normal haver divisões e papéis já formados. Esta oportunidade individual pode gerar autoconfiança nos alunos, e revelar habilidades até então desconhecidas, tanto para si, quanto para o grupo.

Perigos do storyboard

Em recente palestra no “Encontro de cinema e escola” em São Paulo (2011), Bergala afirmou desaprovar o uso de storyboard em sala de aula. Já no livro, ele defende que nenhum cineasta imagina primeiro uma cena em planos para depois visualizar o conjunto, mas sim o contrário, por isso submeter os alunos a desenharem o que planejam filmar seria inválido, porém ele cita uma experiência bem sucedida de composição planos com fotografias, para que os alunos pudessem visualizar e refletir sobre suas idéias, antes de executá-las, e neste sentido, não deixaria de ser uma forma de storyboard com uma diferença importante, desenhar é criar e depende de habilidades profissionais, que de fato, as crianças em maioria ainda não têm, mas com fotografias, elas estão compondo com o que já existe, e aí sim, pode ajudar a planejar e experimentar suas idéias antes de filmá-las. Ele diz que a máquina digital e  sua possibilidade de fotografar e manipular instantaneamente os resultados, observando e discutindo em grupo, tem “a vantagem de obrigar a pensar numa decupagem, e a se recolocar a cada imagem, a questão do ponto de vista, do eixo e da distância.” (Bergala, 2008: p. 194)

Sistematizando ‘a hipótese’

Após fazer este percurso na obra de Bergala, considero importante destacar os pontos principais de sua proposta que poderiam ser aplicados na prática em qualquer contexto escolar.

-Trabalhar com o cinema arte promovendo um encontro com a alteridade.
-Análise minuciosa de filmes ou trechos de filmes de arte a partir de um tema ou questão do cinema.
-Escola preservar um acervo de filmes alternativos aos de cinema de puro consumo.
-Organizar a possibilidade do encontro com os filmes (cineclube, cinema, sala de aula)
-Designar, iniciar, tornar-se passador (seleção de filmes sem desconsiderar o gosto pessoal)
-Aprender a freqüentar os filmes (rever os filmes, respeitando o tempo da criança)
-Tecer laços entre os filmes (relação cinema passado-presente)
-Decomposição de planos com fotografia digital
-Edição não-linear como oportunidade para repensar a criação.
-Alunos terem a oportunidade de criar algo individual e coletivamente
-Exercício: Minuto Lumiére  - resgate do primeiro cinema