quarta-feira, 31 de agosto de 2011

A elite intelectual

por Alessandra Collaço da Silva

            Se engana aquele que pensa em luta de classes apenas em contextos econômicos e sociais, há também uma outra batalha, menor, mas tão intensa quanto, no contexto acadêmico. Nietzsche (2000) fala em seus escritos que entre a natureza humana é natural o surgimento de uma ‘aristocracia intelectual’, que entendo aqui, como uma pequena parcela da população que se interessa em procurar respostas para suas inquietações no âmbito da ciência e pesquisa. Não que ele entendesse porque essa divisão acontece, mas apenas que acontece!

            Será que essa divisão de classes, já percebida no aspecto social e econômico, no contexto intelectual, também não é causada justamente pelo mesmo acesso desigual ao conhecimento e a informação em sociedades capitalistas (ou não), naturalmente condicionando determinadas camadas sociais (populares) ao alienamento, promovendo uma seleção ‘natural’ no intelecto, apenas por desnivelamento na formação e educação?!

            Saviani (2009) já afirmou que historicamente teorias na área da educação, constataram que muitos dos métodos pedagógicos adotados pela sociedade, acabaram por apenas reforçar a desigualdade social, já existente, por serem determinadas pelo interesse de classes dominantes sobre as dominadas. Afinal, porque o Estado (ou a elite) iria querer oferecer a mesma educação para todas as classes, se tendo consciência do controle e imposições que sofrem, as classes dominadas se rebelariam contra o sistema?!

            Neste sentido, o que falo aqui não é novidade, afinal este é o discurso que escutamos no programa de pós-graduação em educação da UFSC e em muitos outros, onde nos engajamos em lutar por melhorias na educação, espaço onde atuamos (ou não) e fundamental para uma transformação social significativa. Porém, ao ingressar na pós-graduação, percebi que os mesmos que discursam, são também os que sustentam este abismo, em posturas acadêmicas competitivas e vangloriadas.

            Para muitos, estar num mestrado ou doutorado é um grande privilégio, e um nível intelectual é naturalmente exigido, mas por quê?! Porque é um privilégio?! Será que poucos chegam lá apenas por merecimento?! Quantas pessoas têm projetos fantásticos e uma vontade gigantesca de contribuir para transformação da sociedade, partindo do âmbito acadêmico, mas por um ou outro motivo burocrático, acabam sendo excluídos de processos seletivos em programas de diversas universidades?! Falta de orientador, projetos descartados, pouca verba, pouca vaga, nota baixa em alguma prova. Por que é necessário tanto nivelamento?! Quem faz parte de uma pós-graduação ou chega a ser professor no ambiente acadêmico é realmente o mais competente para tal?!

            Quantas aulas improdutivas e professores despreparados em cursos de graduação e pós, enfrentamos ao longo da vida?! Quantos profissionais e educadores saem despreparados das universidades, e ingressam (ou não) na área profissional sem êxito, infelizes, descartados, desvalorizados, dando continuidade a um abismo social, já existente e cada vez maior?! Numa filosofia capitalista, onde só o julgado ‘melhor’ atinge o sucesso, realmente não há espaço para todos?! 

            O que observamos não é um sistema coletivo de trabalho, sustentada por todas as camadas sociais, sem distinção de importância, mas sim uma distinção de ‘status’ social, onde aqueles que atingem formação superior têm mais valor que os que apenas oferecem sua ‘força de trabalho’. Porque o conhecimento tem realmente mais valor que a força de trabalho, se para manter este sistema funcionando, todas as funções, profissões e ações são necessárias para mantê-lo?! 

            Porque alguém que atinge uma pós-graduação deveria ser considerado privilegiado e supervalorizado por isso?! Não deveria! Estar lá é fruto de uma capacidade e vontade despertada de uma educação que não é igual para todos. É talvez um privilégio triste e parece que no ambiente acadêmico, eu deveria me sentir vangloriada e deveria vangloriar os que lá estão e lá ajudam a ‘transformar’ a sociedade, mas não é como me sinto. Uma pós-graduação é para mim nada mais que uma continuidade dos estudos da graduação. Uma forma de contribuir de alguma forma para a pesquisa, a partir da minha experiência pessoal, no contexto da educação, que é meu caso, mas muitas vezes, sinto que sou cobrada e pressionada a apresentar um nível intelectual, que não sei se tenho e se deveria ter. Deveria ter?! O que ofereço não é suficiente?! 

            Sou obrigada a ler diversos autores para fundamentar idéias e pensamentos que talvez já tenha, a partir de outras construções e experiências. Sou obrigada a concordar com o que já foi dito, só porque o que tenho a dizer ainda não pode se comprovar, não tem valor. Sou obrigada a cumprir prazos e metas, para enriquecer meu currículo e então poder fazer um uso prático da minha pós-formação, ou todo esse investimento só terá valor para meu crescimento pessoal e nada mais. Sem um diploma, um título e um currículo recheado, não represento nada e nada posso transformar. É isso que ouço, ainda que me deixe inquieta.

            Se não supervalorizo aqueles que já têm uma estrada percorrida, sou ousada e arrogante, e novata, nada tenho a dizer ou ensinar que possa ter reconhecimento. Hannah Arendt (2009) diz que é natural que as velhas gerações confrontem as novas, ainda que por “mais revolucionário que possa ser em suas ações, é sempre, do ponto de vista da geração seguinte, obsoleto e rente á destruição.” Mas para dar continuidade ao mundo e humanidade, é necessário permitir que as novas gerações tenham “a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum.” Se sou obrigada a fazer estas leituras, para articular com outras teorias, porque na prática não enxergo estas atitudes?! 

            Leio sobre métodos pedagógicos que incentivam a valorização da experiência e interesse do aluno e educando, mas enquanto aluna e educanda numa pós-graduação, devo apresentar uma conduta impecável, de humildade e submissão, e minha experiência ou interesse não são suficientes para receber motivação. Sinto-me sempre cobrada e pressionada, muitas vezes, sentindo-me desvalorizada e incapaz, e muitas vezes me sentindo como uma máquina, que não deve sentir, sofrer, chorar, desequilibrar-se, fugir, enganar-se, ter problemas ou realizações pessoais, como se fazer pós fosse uma grande dádiva e só com isto, deveria me sentir feliz e satisfeita, desconsiderando o grande fardo que é continuar estudando, numa sociedade capitalista e machista, que valoriza a intensa produção, e se improdutiva, não sirvo nem como força de trabalho ou força intelectual. Não há espaço para instabilidades emocionais, apenas para alguém que deve a todo custo fazer valer sua vaga tão privilegiada, sem questionar-se por isso e sem lutar com outras armas. 

            Na elite intelectual, muitos abrem mãos de suas vidas pessoais como um grande favor para humanidade, e cobram de todos os outros que se arriscam pelo mesmo caminho, sem entender que o fundamental para a transformação social é a motivação pessoal. É preciso ter paixão e amor com o que se faz, ou esse fazer se torna apenas um discurso, uma teoria, ‘palavras no vento’, que não mudam nada e nem ninguém, por que sem o pessoal na vida acadêmica, não há lugar para o sentimento, ingrediente fundamental para qualquer transformação que se queira fazer. 

            Quantas paixões foram frustradas por barreiras burocráticas e por descrenças daqueles que há muito não sonham mais e não lembram mais das suas inexperiências e falhas?! Quantas paixões ficaram guardadas nas estantes e nas rodas de conversa, porque foram desvalorizadas demais para seguirem em frente?! E muitas vezes o que segue no ambiente acadêmico não é mais uma paixão, mas ambição, seja ela profissional, financeira, mas sem comprometimento de transformação social. 

            O que vivemos no ambiente acadêmico é uma ‘máfia de currículos’ e posições sociais. Quanto mais publicações e participações em bancas e eventos, mais competente se é! Será?! Critérios estabelecidos justamente por aqueles que tanto falam em qualidade e não em quantidade! Justamente por aqueles que pregam a necessidade de mudança, mas continuam cobrando e pressionando da forma mais conservadora possível. 

            Viva a contradição humana! Mas cabe a pergunta, para quê e para quem é uma pós-graduação?! Porque eu deveria vangloriá-la, se ela é apenas parte de uma longa caminhada, sem a qual não conheço o destino, e onde só posso contribuir com o que ‘tenho’?! E porque o que ‘tenho’ é tão pouco?! Porque preciso ser muito para ser alguém?! Não posso encará-la como um projeto pessoal, muitas vezes, de auto-conhecimento e amadurecimento?! Eu deveria estar pronta para esta jornada? Alguém está?!

            Só porque alguém tem inúmeras publicações, leu muito mais do que eu, cumpriu todos os prazos, está mais preparado?! E será muito mais bem sucedido?! Será que eu, na minha ingênua idéia de contribuir como posso, não tenho nada a oferecer?! Meu pouco não é suficiente?! As ‘portas da elite intelectual’ devem se fechar porque não me enquadro em todas as regras?! Estas portas não deveriam se abrir e acolher a todos que nela batem, para justamente esfumaçar os limites que as divisões de classes impõem?! 

            Pergunto-me diariamente porque quis continuar estudando. Por que continuar estudando numa sociedade tão preocupada com resultados?! Por que sacrificar minha vida pessoal por mero prestígio profissional?! Por que insistir numa batalha, que insiste em me diminuir?! Pra fazer valer a pena pelos que não podem? Pra ter algo a contribuir neste mundo tão cego e interessado em capital?!  Pra conciliar paixão com necessidade de renda?! Não sei...são respostas que ainda não tenho...são perguntas que me rondam e inquietam...a única coisa que sei é que quando se estuda e nesse estudo se aprende algo, vicia. E quando se para, a mente esvazia, ‘emburrece’. Existe uma necessidade de entrega, uma vontade de conhecer enorme, e com ela, cresce uma vontade de compartilhar este conhecimento com todos, mas nem sempre ‘todos’ estão interessados em ouvir. Nem sempre estão preparados ou dispostos. E assim, só resta silêncio e sinceramente, não foi com silêncio que a humanidade mudou nada! 

            Como diria Nietzsche (2003), para transformar é preciso ‘marteladas’! É preciso confronto direto, é preciso questionar as regras e se possível, quebrá-las, sem num primeiro momento ser reconhecido por isso, pois ‘nós plantamos para que gerações futuras possam colher!” e não acredito que apenas uma pessoa possa fazer isso, são várias vozes unidas que podem! Então se para mudar essa elite intelectual eu precise confrontá-la, aqui estou eu confrontando, criticando, lutando...tentando ser o que sou, pois "se sou um, é melhor estar em desacordo com o mundo do que estar em desacordo comigo mesmo!" (Sócrates apud Arendt, 2009)

Outras Vozes unidas a minha!

ARENDT, Hannah. A crise na educação in Entre o passado e futuro. Tradução Mauro W. Barbosa. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009.

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Trad. de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000.

__________ Escritos sobre educação. Trad. Noéli Correia de Melo Sobrinho. RJ : Ed. PUC-Rio, 2003.

__________ Assim Falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Petrópolis – RJ: Vozes, 2008.

__________ O espírito livre. In. Além do Bem e do Mal. Tradução: Paulo César de Souza.
Companhia das Letras. São Paulo, 2005.

Revista Cult. Dossiê “Nietzsche – humano demasiado humano” São Paulo: Bregantini Ano 13. Edição 143 pg. 48-64

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia: teoria da curvatura da vara, onze teses sobre a educação política. 41. ed. revista. Campinas, SP: Autores Associados, 2009.

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